Um incêndio num lar de idosos em Mem Martins, que provocou a morte de 8 idosos ocorreu há 20 anos.
Noticia do Jornal 'Publico' em 16 Maio de 1999
Um incêndio provocou ontem a morte
a oito idosos de um lar em Mem Martins, concelho de Sintra. Outros dois utentes
ficaram gravemente feridos e mais dez passaram a noite no quartel dos
bombeiros. O pesadelo poderá ter tido origem numa deficiência eléctrica, mas o
facto de o estabelecimento não possuir licença, ainda pendente de vistorias da
câmara e dos bombeiros, também poderá ter ajudado.
O Lar Coração de Maria, em Mem
Martins, onde um incêndio provocou ontem a morte a oito idosos e ferimentos
graves em mais dois, estava a funcionar sem alvará, encontrando-se a decorrer o
respectivo processo de licenciamento. A aprovação do pedido de licença estava
dependente, segundo uma fonte da Secretaria de Estado da Inserção Social, de
pareceres da Câmara de Sintra e dos bombeiros. Foi cerca das 0h43 que os
bombeiros de Algueirão-Mem Martins receberam uma chamada para acudirem a um
incêndio no Lar Coração de Maria. Em poucos minutos chegaram junto da vivenda
que servia de habitação para as duas dezenas de idosos, mas já pouco puderam
fazer. Metade dos idosos ocupava vários quartos no rés-do-chão e os restantes,
entre os quais alguns acamados, repartiam-se pelos quartos do piso superior,
numa espécie de águas-furtadas. As chamas deflagraram na sala de convívio,
existente ao cimo das escadas para o piso de cima, e junto ao corredor que dá
acesso aos vários quartos. De acordo com o comandante dos voluntários locais,
Manuel Sousa, o sinistro terá tido origem "numa sobrecarga dos circuitos
eléctricos junto de uma televisão", que funcionava na sala de convívio. No
entanto, esta suspeita terá ainda que ser validada por investigações
posteriores, a realizar pelas autoridades policiais e pela Inspecção Superior
de Bombeiros.As labaredas propagaram-se rapidamente ao revestimento interior da
vivenda, em madeira e esferovite, provocando um fumo intenso.
Das 10 pessoas
que ocupavam o andar de cima, apenas duas sofreram queimaduras. As restantes
morreram intoxicadas pelo fumo nos próprios quartos. Os bombeiros só
conseguiram chegar ao local onde se encontravam as vítimas após combaterem as
chamas na sala de convívio. Isto porque o único acesso aos quartos era
precisamente pelas escadas, de reduzidas dimensões, e pela sala de convívio, já
que todas as janelas da vivenda se encontravam vedadas com
grades."Transformaram aquilo num presídio. Estou convencido de que as
grades, neste caso, não intervieram directamente com as mortes, mas o que é um
facto é que os bombeiros não puderam usar as janelas para entrar e tiveram que
subir por onde estava o fogo", comentou o presidente do Serviço Nacional
de Protecção Civil, António Nunes. Segundo este responsável, o lar possuía dois
extintores e um diagrama dos quartos devidamente afixado, mas os eventuais
"canais de evacuação [as janelas] estavam tapados". Por isso, notou,
"se houvesse uma fiscalização preventiva aquilo não tinha
acontecido".
Uma vigilante do lar, Mariana Esteves, 50 anos, justificou a
presença das grades com razões de segurança contra intrusos e para evitar que
alguns dos idosos pudessem "tentar alguma coisa". A mesma funcionária
garantiu que, quando trocou de turno com outra colega, pela meia noite, estava
tudo bem: "Os velhotes estavam a dormir e não cheirava a queimado".
As condições do lar também não lhe mereceram reparos, embora reconhecesse que,
no piso de cima, havia um quarto "que não tinha luz e a campainha [de
emergência] estava avariada". Quanto ao resto, assegurou, "eram todos
tratados com carinho".Quem não está convencido disso é Carlos Ferreira,
filho de uma sobrevivente do incêndio. Entre as suas críticas ao funcionamento da
casa estão as queimaduras nos braços com água quente que a sua mãe sofreu em 28
de Fevereiro último. Carlos Ferreira acusou, através da RTP, os responsáveis do
lar por terem deixado a sua mãe sem assistência médica "até ao dia 4 de
Março". Em resposta às queixas que apresentou às entidades oficiais,
disse, apenas recebeu uma carta informando que o Centro Regional da Segurança
Social está a acompanhar o assunto.
Além dos oito mortos, os bombeiros
transportaram para o Hospital Fernando Fonseca (Amadora-Sintra) mais três feridos.
Um deles teve alta pouco depois, mas os outros dois tiveram de ser transferidos
para o Hospital de São José, em Lisboa. Ao final da tarde, o estado de ambos
era "crítico", segundo um dos responsáveis pela Unidade de Queimados,
António Gomes Silva. Os dois homens, um de 54 anos e outro de 76, apresentavam
queimaduras na faringe, na traqueia e nos brônquios e suspeitava-se que também
tivessem os pulmões afectados."Estiveram demasiado tempo encerrados num
ambiente fechado, com muito calor", explicou o médico. "Encontram-se
ligados a ventiladores e estão muito mal", acrescentou o clínico. Mesmo
que sobrevivam aos próximos quatro ou cinco dias, não é certo que se salvem,
devido à gravidade das lesões provocadas pelas queimaduras. Um factor que pode
ter pesado negativamente na evolução do estado dos dois homens foi a falta de
informações, no hospital, sobre o seu passado clínico. Suspeitava-se ontem de
que um deles poderia ser diabético.Os sobreviventes passaram a noite no quartel
dos bombeiros de Algueirão-Mem Martins. Ali foram visitados pelo ministro da
Solidariedade Social, Ferro Rodrigues, pelo secretário de Estado-adjunto do
ministro da Administração Interna , Armando Vara, e pela presidente da Câmara
de Sintra, Edite Estrela (ver reacções nestas páginas). Perto das 6h45, os 10
idosos seriam transferidos para o Lar da Quinta do Oitão, em São Pedro de
Penaferrim, propriedade do Centro Regional da Segurança Social e gerido pela
Fundação António Leal Silva."Eles queixavam-se principalmente de muito fumo,
muito fumo", contou a directora da Quinta do Oitão, Susana Branco, que se
escusou a facilitar o contacto do PÚBLICO com qualquer dos sobreviventes, por
estes estarem "a descansar". Todavia a estação de televisão SIC teve
acesso a um dos sobreviventes acolhido no lar da Segurança Social, que contou
ter-se apercebido das luzes a apagarem-se, ter ouvido um estrondo e ter ouvido
os bombeiros a gritar.
O Lar Coração de Maria, acusou, tinha "más
condições".As famílias de dois dos sobreviventes já ontem tinham assegurado
a sua transferência, na segunda-feira, para outras instituições. Os restantes
ficarão entregues aos cuidados do lar de São Pedro, que ontem viveu um corropio
excepcional, também por parte das famílias dos idosos que já ali se
encontravam. "Ela está bem disposta", descreveu Laurinda Alves, após
visitar a mãe, Maria dos Prazeres, 75 anos, que viveu os últimos cinco anos no
Coração de Maria. A filha mostrou-se convencida de que a mãe e o pai, este
falecido há duas semanas, eram bem tratados no lar de Mem Martins, e negou ter
conhecimento de falta de limpeza ou maus tratos.Entretanto, segundo uma fonte
da Secretaria de Estado da Inserção Social, o lar apresentou em Dezembro de
1998 um pedido de licenciamento ao abrigo das novas normas de funcionamento deste
tipo de estabelecimentos. Embora haja no processo alguns elementos fornecidos
pelos bombeiros, o mesmo informador acrescentou que a autorização ainda não foi
dada "porque faltam pareceres de vistorias dos bombeiros e da câmara
municipal". Por seu lado, a associação que representa os proprietários de
lares de idosos comunicou que o Coração de Maria funciona como lar desde 1976,
e que à semelhança de 90 por cento dos lares do país, aguarda o licenciamento,
funcionando com um "certificado de segurança dos bombeiros".Questionado
acerca do processo existente na Segurança Social, o segundo comandante dos
voluntários de Algueirão-Mem Martins, César António, admitiu que possa ter
existido "uma consulta" à sua corporação, mas salientou que " em circunstância
alguma pode haver um parecer positivo dos bombeiros" ao Coração de Maria.
E concluiu: "Formalmente não deu entrada qualquer pedido de
vistoria". O proprietário, Salim Talik Ibrahimo Ossam, que o PÚBLICO não
conseguiu contactar, possui um outro lar em Loures. Segundo uma empregada
encontrava-se ausente.