Tristan, a arte de expor como
se vive em Algueirão-Mem Martins: “É um sítio bom para sonhar que as coisas
possam melhorar”
O artista multidisciplinar de 27 anos, que se tem debruçado sobre a cultura da periferia de Lisboa, vai atuar — de forma bastante simbólica — esta sexta-feira na estação de comboios do Rossio, a convite do festival Lisboa 5L.
Para quem vem da Linha de Sintra, o Rossio parece que é um portal mágico, de repente estás num sítio novo”, diz Tristany, cantor, artista multifacetado de 27 anos, nascido e criado em Algueirão-Mem Martins, sobre a experiência, repetida vezes sem conta, de sair na estação de comboios e dar de caras com a Baixa de Lisboa.
Para as milhares e milhares de pessoas que vivem no concelho de
Sintra, o comboio é o meio de transporte mais comum. É “a” forma de chegar ao
centro. Mas a relação de Tristany com esta estação em particular vem desde
muito cedo. “Desde bebé. Era onde me iam buscar para ir para a creche.
Deixavam-me no Rossio e havia uma camioneta que me levava.”
Mais tarde, foi também o “portal” para explorar “a curiosidade
de ir a Lisboa pelas primeiras vezes”, com os seus amigos de Mem Martins. E,
claro, o início do “sair à noite”. “Tenho um carinho especial por este lugar. É
uma estação onde já vivi muitas emoções.”
Esta sexta-feira, 5 de maio, pelas 19 horas, soma mais uma
memória na Estação do Rossio: no Festival Lisboa 5L, Tristany
vai apresentar uma performance numa das pontes da parte superior do edifício –
precisamente onde as pessoas desembarcam dos comboios da Linha de Sintra e
prosseguem as suas vidas.
“Àquela hora, os turistas devem estar a voltar [de Sintra], as
pessoas devem estar a ir para casa… Estou bué grato pela experiência. É muito
especial, fiquei muito contente, é um grande desafio.”
Tristany vai interpretar versões mais experimentais das canções
do seu álbum lançado em 2020, “Meia Riba Kalxa”, mas a atuação também terá uma
componente expositiva, com algumas peças criadas no ano passado para a mostra
“Interferências”, do
coletivo Unidigrazz (do qual faz parte), apresentada no MAAT. Acaba
por representar uma transição entre “Meia Riba Kalxa” e o seu segundo álbum,
que tem estado a preparar. “É um apeadeiro…”
Esta só pode ser uma atuação na estação do Rossio simbólica,
sendo Tristany de um subúrbio e alguém que tem reclamado essa identidade e
enaltecido a falta de visibilidade a que muitas vezes as pessoas da periferia
estão sujeitas, com a ocupação de um espaço central, o último destino em tantas
viagens começadas na Linha de Sintra.
“Ya, sem dúvida. Tenho de reconhecer que se calhar tem um sabor diferente para uma pessoa com as características que eu tenho. Tem um sabor de vitória. Mas, no fundo, se eu pensasse assim, na minha cabeça isso era continuar a limitar-me. Quero normalizar a cena e se calhar ainda vou ficar mais feliz quando der um concerto na minha zona.”
Do Rossio a Mem Martins
A viagem
começa precisamente na estação do Rossio. Até Algueirão-Mem Martins, a última
paragem da Linha de Sintra antes da dita vila, são 33 minutos de percurso. Ou
seriam, caso não existissem atrasos na CP.
Em
Algueirão-Mem Martins, embora estejamos naquela que foi durante vários anos a
freguesia mais populosa da Europa, a estação não foi transformada numa
estrutura maior (ao contrário de outras paragens da Linha de Sintra) e continua
a estar bastante imersa na vila. Do lado de cima da linha é Algueirão, do lado
de baixo é Mem Martins.
“Já vivi
em Mem Martins, agora vivo no Algueirão, mas é indiferente. O código postal é o
mesmo [risos]. A única coisa que separa é a linha do comboio”, explica
Tristany. Usa um cap e óculos de sol, uma T-shirt branca, calças de fato treino
e sapatos de vela. Não é a combinação mais comum, mas nada em Tristany é assim.
A linha
do comboio também divide Massamá e Barcarena, sendo que esta última já fica no
concelho de Oeiras. “Por acaso só soube disso de Barcarena no ano passado”, diz
Tristany. “E é muito raro veres pessoas [a saírem do comboio] a irem para o
lado de Barcarena.”
Algueirão-Mem
Martins é o habitat natural de Tristany, o sítio onde sempre viveu — a mãe, a
cantora portuguesa Ritta Tristany, já ali morava. O pai, o músico luso-angolano
Firmino Pascoal, vivera antes no Barreiro. O irmão de Tristany, que assina
simplesmente como Trista, também é músico. Faz parte do popular coletivo de hip
hop Instinto 26, ao lado de Julinho KSD, Yuran e Kibow.
Está uma
tarde soalheira e de céu limpo, e Tristany aponta o facto de aqui ser raro não
haver estacionamento. Há poucos prédios de grande dimensão, pelo que os mais de
68 mil habitantes (de acordo com os censos de 2021) se dividem sobretudo entre
pequenos edifícios e vivendas.
Na rua
não falta movimento: pessoas que passeiam cães, reformados que fazem compras ou
dão os seus passeios diários, carros que circulam e só param quando
atravessamos a passadeira.
“Tenho
orgulho, mas não tenho a coisa de ‘só aqui é que é a cena’. Mas tenho orgulho
de ter nascido e crescido aqui e tudo o que isso me proporcionou até hoje.
Gosto da Linha de Sintra em geral, gosto de viver aqui, gosto de Portugal em
geral. O espaço em si é incrível. Este sol, estar perto do mar… Sei lá, é um
sítio bom para se sonhar com que as coisas possam melhorar”, diz Tristany,
enquanto se aproxima de uma mercearia de produtos africanos.
“A minha dica era virmos aqui, mas se estiver… Olá,
tia, já vou aí!”, comenta para a senhora atrás do balcão, que o cumprimenta
efusivamente. Tristany vive a 10 minutos dali e desce umas escadas rumo a uma
praceta. “Sinto que em Mem Martins estamos habituados a andar bué. Porque temos
a vantagem de ser um sítio plano. O único sítio onde tens de subir é a Tapada
das Mercês. Quando é miúdo o pessoal está habituado a andar.”
Chega a
um largo onde está a ser feita uma vasta obra: “Isto antigamente era um
mercado, aqui também se fazia a feira. Agora é feita na Tapada.” Ele tem
memórias disso. “Sim, tenho memórias vagas de vir aqui com a minha avó, mas
também havia noutros sítios e também ia. Ainda vou às Mercês e também tens a
feira do Monte Abraão”.
Passa rap
a um volume considerável. “Não costumam passar carros nenhuns aqui, mas agora
estão bués.”
Será que
as pessoas de Mem Martins têm mais ligação a Sintra do que as pessoas de outras
zonas da Linha de Sintra? Tristany anui com a cabeça. “Sim, sinto isso. Acho
que Rio de Mouro, Mercês e Mem Martins têm essa proximidade. Esse corte é um
bocado feito a partir do Cacém. Também existe aquele pequeno ego de quem está
mais próximo de Lisboa [risos].”
Arte a full-time?
E ele, já
consegue viver da sua arte? Desde que lançou o (aclamado) álbum “Meia Riba
Kalxa” que se tem dedicado apenas ao seu trabalho artístico. Mas admite estar
numa fase de mudança.
Tristany relembra que o facto de ter os projetos da Unidigrazz também lhe garante mais independência financeira. O coletivo formado com amigos de Algueirão-Mem Martins (como Diogo “Gazella” Carvalho, Onun Trigueiros, Sepher e Rappepa Bedju Tempu) tem vindo a fazer inúmeros trabalhos artísticos — cruzando artes visuais com cinema, fotografia ou teatro — e têm sido bem acolhidos por entidades importantes da cena artística lisboeta. Além de terem tido uma exposição no MAAT, estiveram na última edição do Festival Iminente e agora estão a preparar uma exposição em conjunto com a galeria Underdogs, de Vhils, que será inaugurada entre “o final do verão e o início de outubro”.
“Para nós é sempre um trabalho para aqui, para a
região. É trabalhar o que está aqui e trazer visibilidade. O maior objetivo é,
com as obras que estão a ser criadas, expor aquilo que se vive e aquilo que se
vivenciou aqui. A proposta da Unidigrazz é trazer soluções, o mindset é
esse. Porque, se não, não se consegue avançar. As soluções têm de ser fixes — e
vão e estão a ser. Isso é o mais gratificante de tudo. E não é um trabalho que
é só nosso. Está a ser super bem representado, por exemplo, pelo [rapper e
produtor] T-Rex [de Monte Abraão]. E isso é o que dá mais prazer: perceber que
as pessoas com quem crescemos, que existe perspetiva, projeção e há uma cena de
querer romper e participar. Sinto que todos fazemos esse papel e que toda a
gente está a contribuir. Veres que as pessoas com quem cresceste fazem aquilo
que sonharam é a cena mais fixe e inspiradora. Aqueles que são jogadores de
futebol são jogadores de futebol, os médicos, os arquitetos…”, diz.
Consigo
traz duas peças que fizeram parte da instalação inicial de “Interferências”, a
tal exposição que apresentaram no MAAT. Ao todo, transformaram cinco
fotografias tiradas por ele e por Diogo “Gazella” Carvalho em bandeiras.
A banda
sonora era “Hinu Digra”, uma espécie de remake de “A Portuguesa”, o hino
português, com que Tristany abriu o seu álbum “Meia Riba Kalxa”.
Tristany
partiu da cultura hip hop mais convencional, tão entranhada na Linha de Sintra
e em particular em Algueirão-Mem Martins, mas desde cedo cedeu à experimentação
e construiu uma identidade artística singular, que se tem materializado cada
vez mais pelo facto de a sua obra ser tão multidisciplinar.
“Inconscientemente
talvez já tivesse essa ideia de fazer trabalhos multidisciplinares e
questionava isso, mas se calhar só ganhei a confiança… Se calhar só a estou
ganhar agora. Posso ter pessoas à volta que estão em múltiplas formas
artísticas. Acho que agora é mesmo esse o statement, é esse o meu principal
objetivo.”
E Lisboa? Tudo é Lisboa?
Será que
o facto de ter crescido na periferia, e a visibilidade que Tristany reclama com
os seus projetos para as enormes comunidades que pouca projeção têm em certos
circuitos, muda alguma coisa na relação com Lisboa? – questionámos.
“Nós às
vezes esquecemo-nos de que temos pés. Ou, sei lá… cotovelos. As partes que
achamos mais insignificantes do nosso corpo, mas que são fundamentais para
conseguirmos andar. Temos que tentar entender, por mais difícil que seja, a
importância de cada parte. É a ideia de haver um sentimento global. A minha
música vai abordar mais coisas. Mas ela parte de um sítio onde existem essas
inquietudes, muitas questões que não estão a ser resolvidas. Espero que a
música, e o meu trabalho, seja uma possível solução.”
Tristany
sublinha, porém, que o espaço não é limitativo.
“Podes ser daqui e não teres de te preocupar com isso. Ou até podes ser
uma pessoa que vive no centro e está super preocupada com estas questões. O que
interessa é que haja um equilíbrio. E é muito importante que haja uma
comunicação, que as pessoas se consigam verdadeiramente entender. Se desse para
apelar a alguma cena, seria essa.”
Acaba por
descrever, de forma intrigante, a sua relação com a cidade de Lisboa como
“interesseira”.
“De eu
para ela, ela para mim… Eu também nasci e cresci em Lisboa, não é? É um espaço.
E esse espaço tem de ser meu. Esse espaço é meu. Se um dia quiser e tiver
possibilidade, quero viver em Lisboa. Estou só a dar um exemplo, não me
interessa onde vivo… Mas quero poder permitir-me isso. Poder pertencer. E eu
posso pertencer. Não me posso limitar com isso. Lisboa é minha também. Não é
também: Lisboa é minha”, diz, antes de esboçar um sorriso. “Mas Sintra é um
amor diferente, é um carinho especial [risos]. Especificamente a Linha de
Sintra.”
Numa
entrevista, uma das primeiras que fez, Tristany explicava que uma temporada que
tinha passado em Londres, tinha representado um ponto de viragem. Tinha encontrado
outra Linha de Sintra, no sentido em que muitos amigos com quem cresceu tinham
emigrado para lá, e que isso o fez valorizar mais a sua cultura suburbana. Na
altura, já fazia rap de forma mais tradicional, de padrões mais
norte-americanos, mas foi a partir daí que começou a desenvolver uma maior
identidade relacionada com os seus códigos locais.
“Isso
aconteceu-me especificamente em Londres mas também já me aconteceu noutros
sítios, onde estão amigos vindos daqui. Vais a casa das pessoas e parece que há
um microcosmos. É uma porta para estar aqui, mas é um ‘aqui’ que já não existe.
Porque aqui continua a mudar, está em constante transformação. E quando estou
lá fora parece, neste caso, uma Linha de Sintra ou uma Lisboa que já não
existe.
É bom crescer, aprender e constatar que podemos ser
de algum sítio, se quisermos. Porque tu podes ter ou não documentos, ter ou não
casa, mas não é só isso que define tu pertenceres a algum lado. Vai muito além
disso, é um sentimento de pertença.”
E esse
sentimento de pertença?
“É uma
constante soma. Já tive fases em que via as coisas de maneira diferente,
sentia-me mais condicionado. Noutras sinto que posso transformar isto. São
várias emoções que se vão acrescentando. No fundo é crescer.”
Muitas
vezes, também existe a ideia pré-concebida de que “lá fora é melhor”?
“Também é
uma coisa que estamos constantemente a ouvir. E, fora tudo aquilo que sabemos
que é mau ou que uns vivem mais do que outros, isto é um sítio com muito
potencial. Abrangendo tudo, não só a Linha de Sintra. O meu maior desejo é
poder continuar a estar num sítio e a construir memórias e a acrescentar
sentimentos. Isso é uma bênção. Poder sair e voltar, ou poder ficar aqui e
‘uau, agora ainda gosto mais deste sítio’.”
Assume-se
como um otimista?
“Onde há
pessoas há esperança. Há uma possibilidade de aprendizagem.” Quando era
adolescente, o facto de dois dos seus amigos mais próximos — com quem hoje
colabora no coletivo Unidigrazz — terem ido estudar para a Escola Artística
António Arroio, no centro de Lisboa, foi determinante.
“Eles
deram-nos esse acesso, começámos a conhecer pessoas de Lisboa, de outros sítios
e contextos. Permitiu-me falar com pessoas com que se calhar não consigo falar
aqui. Que têm um tempo diferente. O facto de viverem em Lisboa pode permitir
que tenham mais tempo para certas coisas. Então foi fixe para haver um diálogo,
um crescimento mútuo. Felizmente eles foram esses nossos peregrinos e a partir
daí começámos a navegar e a conhecer pessoas fixes, daqui e dacolá.”
Centro e periferia: as diferenças?
Começamos
a refletir sobre as diferenças entre os subúrbios — neste caso, a Linha de
Sintra — e o centro da cidade. “Sinto que os espaços não foram pensados para
que as pessoas possam interagir entre elas. Por exemplo, aqui temos um espaço
imenso bué fixe”, diz, enquanto aponta para a zona desafogada junto da ribeira.
“Se
calhar poderia haver grelhadores públicos para o pessoal fazer uma assada. Isso
não é estimulado. Se há sítios com essa possibilidade é possível que as pessoas
fiquem aqui até às tantas a fazer barulho. E as pessoas querem dormir, etc., é
uma bola de neve. Se calhar os sítios não foram desenhados para as pessoas, mas
lá está o meu lado otimista: o Dubai também era um deserto. Se calhar de forma
não tão inimiga do ambiente e megalómana [risos], mas acredito que podemos
redefinir e redesenhar o nosso espaço, porque temos essa possibilidade.”
E a falta de oferta cultural? Nesta zona são
raros os concertos — nem existem espaços para atuações de grande dimensão.
Algueirão-Mem Martins, em particular, tem-se revelado uma freguesia repleta de
talentos na área da música (mas não só, claro). Desde Julinho KSD aos
GROGNation, passando por Bispo ou Landim, foram muitos os que construíram
carreiras de sucesso ao longo dos últimos anos.
“Há
muito potencial. Não é só aquela coisa genérica de dizer que no bairro há
talento. Sinto que as proporções que se estão a alcançar são proporções que
podem levar a outras maneiras de se poder viver nestes espaços…”
E,
atenção, nem todos os casos estão relacionados com a cultura hip hop, como
aponta Tristany.
“Por
exemplo, Mem Martins também tem bué pessoas do rock. Os Rádio Macau vieram
daqui. Havia os V12, uma banda de heavy metal.” E os Excesso. “Os Excesso, a
sério?! Ah, não sabia. Mas fico contente. Até a música mainstream… Quer dizer,
hoje em dia também já há”, diz, entre sorrisos, orgulhoso dos feitos de vários
dos seus amigos e referências locais.
Landim
talvez tenha sido a sua primeira referência da zona. “Eu chegava e olhava para
o Landim e ficava wow… Para mim ele era igual a um rapper americano. Grande
cena. E ficava a pensar como é que faziam os videoclips.
E o o estigma de ser do subúrbio e da Linha de Sintra?
E o tom de pele, o sotaque, os códigos de rua…
“Sim, claro que sentes. Mas às vezes não é explícito.
Quando estás aqui, se não saíres muito, não sentes isso. Só começas a sentir
quando começas a perceber outras questões. Porque é que eu vou sair à noite em
Lisboa? Porque é que os bares só estão abertos até à noite em Lisboa? Mas se uma
pessoa quiser viver cega consegue. E não tem mal nenhum”, acredita.
Apesar de todas as adversidades, Tristany sente um
profundo orgulho e felicidade por aquilo a que ele e os amigos chamam
“sintranagem”. “É um termo inventado pelo Mani [com quem teve o grupo de rap
Monte Real]. É isto aqui. É o que não se explica, mas se sente, quando estás
aqui.”
Tristany aponta que o “bairrismo” nalguns locais da
capital apresenta dinâmicas distintas. “Aqui é mais tranquilo, passas mais
despercebido. E é diferente, porque as pessoas não estão cá [durante o dia],
estão constantemente a chegar ao longo da tarde.”
FONTE: https://amensagem.pt/2023/05/05/tristany-algueirao-mem-martins-arte-rossio/