Na leitaria que recebe os passageiros da linha de comboios de Sintra à entrada da estação Algueirão-Mem Martins, ninguém parece ter uma opinião formada sobre o Estado Islâmico (EI). Mas já todos ouviram falar de Fábio Poças, agora Abdu Rahman al-Andalus, o rapaz "pacato" de 22 anos que, depois de se mudar de Mem Martins para Londres sozinho, partiu há um ano para a Síria a fim de se juntar ao grupo. É o "jihadista português", um de pelo menos 12 nacionais ou luso-descendentes que já se juntaram às fileiras do bando armado nascido com a guerra da Síria e que, há alguns meses, depois da tomada de Mossul no Iraque, anunciou a instalação de um califado islâmico naquela região do Médio Oriente.
"O Estado Islâmico? Só ouvi falar por aí, mas não sei o que é, deve ser mais um bando de malucos", larga uma senhora sobre a sua bica ao balcão, enquanto o anfitrião da leitaria se ri, nervoso. "O meu sobrinho que está ali fora é que deve saber onde pode encontrar jovens para lhe falar disso", diz-nos o dono do café.
O sobrinho chama-se Fábio, como Abdul se chamava quando vivia naquele subúrbio da capital portuguesa. Quando lhe mostramos a capa da "Sábado", onde Abdu Rahman surge com o dedo indicador da mão direita erguido no ar e a bandeira negra do EI na mão esquerda, confirma que é Fábio.
"Tem o mesmo nome que eu, não podia ser boa peça...", diz a rir. Respondemos-lhe que já não se chama Fábio, que agora tem um nome árabe. "Ele levou uma lavagem lá em Londres, aqui é que não foi!", responde cheio de certezas o homónimo, três anos mais velho que o Fábio que já não o é. "Eu no início até pensava que era mais uma palhaçada do 'Correio da Manhã'", mas é mesmo ele... Fui colega dele, não éramos da mesma turma mas às vezes jogávamos futebol nos intervalos. Era o que ele gostava de fazer, jogar futebol. Acho que foi por isso que desistiu da escola no 11º ano, para ir para um clube de Londres", acrescenta a endireitar o boné na cabeça.
Como a senhora que entretanto abandonou a leitaria, Fábio não tem grande opinião sobre o Estado Islâmico, mas tem algumas certezas sobre a vida do conterrâneo e muitas sobre como é que ele acabou a juntar-se ao EI. "Ele morava em Ouressa, depois mudou-se com a mãe para o Cruzeiro, antes de ir para Londres. Era muito fechado, se calhar esse é que era o problema dele... E lá em Londres de certeza que começou a usar o darknet, escreve aí, é a maneira de usar a internet para comunicar sem que detectem os movimentos deles, de certeza que lá em Londres ele se meteu no darknet e foi assim que lhe lavaram a cabeça."
Terá sido o cérebro a ser lavado. Na entrevista que deu à revista semanal, uma tão aplaudida quanto criticada como "propaganda", Fábio, agora Abdu, parece certo de que está a ajudar aqueles que tanto Bashar al-Assad como os insurrectos que o Ocidente financia contra o regime sírio têm andado a oprimir, à vez, em mais de três anos de guerra civil.
Meses antes de partir para a Síria, numa das últimas publicações na sua conta de Twitter, Fábio anunciou que acabara de tomar "a decisão da sua vida", uma que começou oficialmente em Outubro de 2013, quando se mudou para Minbij, no Norte da Síria. Desde então escalou na formação islamita sunita e é hoje um "treinador militar"; pelas suas mãos já teriam passado mais de mil recrutas, garante o próprio, e entretanto já tem três mulheres, entre elas Ângela, uma portuguesa do Alentejo que foi viver para a Holanda, de onde partiu para Minbij a fim de se juntar ao futuro marido, depois de se conhecerem na Internet.
Em Mem Martins ninguém sabia que Fábio agora tem três mulheres, nem ninguém sabe bem o que o levou a deixar--se seduzir por um fundamentalismo que nem a Al-Qaeda parece aprovar ou apoiar. O colega Fábio, o que ainda o é, indica- -nos o caminho para a escola onde estudou com o jihadista português, a Ferreira de Castro, em Ouressa. "Aquilo lá é só quadrilheiras, de certeza que vão querer falar!" À chegada, nenhuma porteira ou auxiliar, apenas um porteiro que não sabe quem é Fábio, ou Abdu, nem o que é o Estado Islâmico e que não tem interesse em conversar sobre o assunto.
Já C., uma antiga professora de francês do jovem nos seus 8º e 9º anos, explica ao i, num tom plácido, o mesmo que o ex-colega de Abdu garantia um pouco antes: que "não foi certamente em Mem Martins" que o rapaz teve contacto com o Islão e com a interpretação arcaica das escrituras que está a alumiar a cruzada do EI. "Era um aluno pacato, muito calado. Não era muito bom a francês mas não porque não quisesse, acho eu, era mais porque gostava muito de desporto e só queria jogar futebol, vinha quase sempre para as aulas equipado e com chuteiras", explica, contrariando em certa medida o autoelogio de Fábio à "Sábado"("Sou bom a aprender línguas.")
"Sabe qual é que acho que é o problema?", acrescenta a professora em modo retórico. "É quando os miúdos não têm um bom acompanhamento familiar... Ele foi para Londres sozinho quando era tão jovem, uma cabeça sem acompanhamento fica mais vulnerável. Porque é como lhe digo, Mem Martins é um sítio perigoso mas o Fábio nem sequer andava metido em gangues, nunca soube de ter arranjado problemas com alguém..."
ESTADO QUÊ? Na escola Ferreira de Castro, nenhum dos jovens que fala com o iparece saber - ou querer saber - ao certo o que é o Estado Islâmico, como surgiu, que pretensões tem, onde e como actua... O grupo só não passa totalmente despercebido porque, há pouco tempo, uma novela portuguesa da TVI, "Jardins Proibidos", incluiu uma referência à actualidade, na voz de uma personagem que chora desalmada porque a irmã Sandra "agora chama-se Leila, usa uma burqa e um daqueles véus que só deixa os olhos de fora e pertence a esses grupos que usam metralhadoras e treinam as pessoas e matam as pessoas".
É essa a referência evocada quando se pergunta sobre o Estado Islâmico aos jovens. Um deles oferece-se para nos mostrar o caminho da escola para o parque desportivo do Casal de São José, que alberga o clube de futebol Arsenal 72, onde Fábio jogava quando morava em Mem Martins. Pelo caminho falamos-lhe do jovem jihadista português e o rapaz angolano, de pele mais escura que o angolano Fábio/Abdu nascido em Benguela, entra numa dissertação sobre a natureza ter formas de equilibrar o mundo.
"Isso do Estado Islâmico é como o ébola, você vê, agora veio aí esse vírus, mata umas pessoas, e a seguir volta tudo ao mesmo." Tentamos orientá-lo de volta ao tema e perguntamos se sabe o que os militantes do grupo têm feito e onde. "Isso é lá no outro lado do mundo, não é? Aquilo é diferente, eles lá sabem. Cada um tem as suas crenças e a natureza é que sabe. Digo-lhe, isso é mesmo como o ébola", sublinha. E segue caminho. No Arsenal 72 não há quem acuda: os campos de terra batida estão vazios à excepção de um rapaz negro que treina capoeira de headphones nos ouvidos e um homem que passeia o seu chihuahua e que nos indica que "só lá para o final da tarde é que chega alguém à secretaria" do clube.
Depois de uma curta viagem de Mem Martins à vizinha Tapada das Mercês, na Associação da Comunidade Islâmica da Tapada das Mercês e Mem Martins (ACITMMM) somos novamente empurrados para o ébola. Enquanto a comunidade termina a oração da tarde nas mesquitas improvisadas nas garagens das traseiras, lemos os avisos em letras garrafais colados na porta de entrada da associação, que pedem a todos os membros que informem as autoridades se tiverem regressado recentemente de países como a Libéria e a Serra Leoa, na África Ocidental, onde o surto viral já matou mais de quatro mil pessoas em pouco mais de seis meses, ou que vão ao hospital se tiverem sintomas como febre e diarreia.
Aqui o ébola parece ser uma preocupação maior do que o EI, sobretudo tendo em conta que é composta por "emigrantes negros africanos", explica Moctar Diallo, coordenador da associação, que nunca ouviu falar de Fábio.
Durante mais de uma hora, o senegalês de 47 anos há-de falar sobre o trabalho da ACITMMM, que há um ano foi distinguida com o prémio Solidar Silver Rose de Justiça Social Europeia, sobre como estão a tentar rentabilizar o espaço alugado a 100 metros da estação das Mercês, sobre os cursos e programas que têm, os alertas constantes aos membros sobre a paz que o profeta Maomé prega em nome de Alá, sobre a importância de se viver em simbiose com a natureza e de nos lembrarmos que, "como humanos, somos imperfeitos".
Sobre o EI não diz muito, só que "é também contra isso" que a associação luta, apesar de admitir que nas hutba, espécie de palestras do imã antes de cada oração - onde se fala sobre "como está o mundo, a comunidade e a sociedade em que vivemos" - ainda não se fez referências ao grupo extremista.
Ainda assim, Moctar tem uma opinião pessoal. "O problema é que a maior parte da sociedade islâmica é ignorante, não sabem nada. Nem eles nem outros noutras sociedades. Nós, muçulmanos, rezamos cinco vezes por dia para não nos esquecermos que somos imperfeitos e que devemos ser solidários e pacíficos. Se calhar devíamos rezar 52 vezes por dia e não cinco! Hoje temos um grande problema: não se apoia nem se investe no lado humano, em lado nenhum do mundo. Quando a verdade é que, se alguém está na rua a fazer o mal, ou se um jovem português sai de Mem Martins para ir para a Síria juntar-se a este grupo, eu tenho culpa disso e você também. Temos todos culpa."