Tempo em Algueirão Mem Martins

quarta-feira, 31 de dezembro de 2025

Antigo Reveillon

Houve um tempo em que o ano novo, em Mem Martins, não começava à meia-noite.

Começava mais cedo, quando se entrava no salão do Mem Martins Sport Clube, e se entrava num espaço onde todos se conheciam — ou, pelo menos, se reconheciam.

Lembro-me do burburinho constante, das cadeiras arrastadas no soalho de madeira, e daquele cheiro tão particular a festa. Não era luxo, nunca foi mas era outra coisa mais rara: era pertença.

Os réveillons no clube tinham essa magia simples. As famílias chegavam juntas, como se aquela noite exigisse um cuidado especial. 

Os mais novos corriam entre mesas e cadeiras, os mais velhos cumprimentavam-se com abraços demorados. Havia sempre alguém a dizer: "está chegar um ano que tudo vai correr melhor...”.


A música fazia-se ouvir cedo, às vezes ao vivo, outras vezes vinda de um gira-discos fiel, que conhecia o gosto das gentes de Algueirão Mem Martins.

Dançava-se sem pressa, com respeito, mas também com alegria. Os lentos colavam os pares, as músicas mais animadas puxavam quem estava sentado.

Ninguém ficava de fora por muito tempo.

Quando a meia-noite se aproximava, o salão mudava de tom, e começava a contagem. Dez, nove, oito… dita em coro, nem sempre certa, mas sempre sentida.

À meia-noite, os abraços tornavam-se urgentes. Abraçava-se quem estava ao lado, conhecido ou não. Brindava-se com o que havia: espumante simples e vinho da casa servido em copos de vidro gatos. Lá fora ouviam-se foguetes, mas cá dentro bastavam as palmas, os sorrisos e os votos ditos de coração.

A noite prolongava-se. As crianças acabavam por adormecer nas cadeiras encostadas à parede, embrulhadas em casacos. Os resistentes continuavam a dançar. O frio ficava do lado de fora. Cá dentro havia calor humano suficiente para atravessar o ano que acabava de chegar.

Hoje, quando penso nesses réveillons, não penso apenas nas festas. Penso num tempo em que o clube era casa, era sala de visitas, era ponto de encontro. Um tempo em que entrar no ano novo era um gesto coletivo, feito de proximidade e presença.

Talvez por isso estas memórias resistam. Porque mais do que uma passagem de ano, aqueles réveillons no Mem Martins Sport Clube eram uma afirmação silenciosa: ninguém entrava sozinho no ano novo.

E isso, ainda hoje, diz muito sobre quem fomos — e sobre quem continuamos a ser.

Sem comentários:

Enviar um comentário