Tempo em Algueirão Mem Martins

segunda-feira, 16 de julho de 2018

[Observador] Muito Papillon, algum Sampha e pouco Khalid para tanto público

Grande poder acarreta grande responsabilidade, já dizia o tio do Peter "Homem-Aranha" Parker (e alguns outros antes). O entusiasmo por Khalid pedia mais do concerto, Papillon teve uma noite de sonho.


Até ver, é a grande revelação da música portuguesa deste ano. Papillon (Rui Pereira), termo francófono que significa “borboleta”, rompeu o casulo com estrondo quando lançou Deepak Looper. O jovem rapper de Mem Martins, Sintra, que é também membro do coletivo GROGNation, lançou o primeiro álbum a solo com produção executiva e supervisão do seu parceiro Slow J (João Batista Coelho), outro dos grandes novos talentos da música portuguesa.

Quem ouviu o disco, que foi editado em março, percebeu que se trata de um objeto único, musicalmente muito rico e revelador de uma caneta apurada. Quem viu Papillon apresentar o álbum nos Estúdios Time Out, em Lisboa, em concerto esgotado e com o público a cantar as letras do início ao fim, percebeu que o rapper é mesmo um fenómeno em ascensão. Hoje, no NOS Alive, Papillon teve o primeiro concerto de consagração e percebeu-o cedo, pela reação das pessoas ao primeiro tema “Impulso”: “Isto é lindo. A sério, isto é muito lindo”, exclamou.

O palco NOS Clubbing estava cheio para assistir à primeira grande estreia do rapper a solo num festival de grande dimensão. A grande maioria do público era composta por jovens, que viram Papillon dar um concerto sem grandes quebras ou momentos mornos — em parte, porque também o disco é muito coeso, não havendo temas facilmente descartáveis. “1:AM” veio logo a seguir à primeira canção e colocou Papillon a rimar sobre a forma como contrariou as (baixas) expectativas do pai. Mas com um ligeiro twist no final: “Aquilo que o meu pai não sabe / é que eu hoje eu vou-me mandar” virou “Aquilo que o meu pai não sabe / é que hoje eu estou no Alive“.

Os convidados do disco apareceram em palco para abrilhantar o concerto: primeiro Slow J,”uma pessoa e um artista inacreditável”, no tema “Imbecis / Íman”, mais tarde Plutonio, para participar na festa de ritmo afro “Iminente”. O último seria desafiado em palco — “Eu sei que não te avisei, mas…”, disse Papillon — para cantar a capella os versos da sua canção “Tu Não Vales Nada”, o que fez. Um tema que Papillon disse que, quando ouviu, pensou: “Gostava de tê-lo feito”.

Depois de participar em “Imbecis / Íman”, mas antes de sair do palco, Slow J apresentou Papillon como “uma pessoa e artista inacreditável, que merece tudo o que está a acontecer aqui”. O que estava a acontecer era uma festa de grande comunhão entre o rapper de Mem Martins e o público. Uma festa em que se celebrou a cultura hip hop — “Quando eu disser hip, vocês dizem hop”, pediu Papillon antes de apresentar o DJ que o acompanhava, X-Acto, a que se somava um guitarrista e um baterista, num formato de banda completa sem uso abusivo de vozes e instrumentos pré-gravados que fortaleceu o concerto.

Não posso continuar sem dizer o quão grato estou por estar neste palco, neste festival fantástico com artistas fantásticos. Sou a pu** da prova viva de que os sonhos podem concretizar-se. É mesmo, mesmo possível”, afirmou, reforçando assim a importância que este concerto tem no seu percurso artístico.

A acelerada “Impressões”, que em alguns momentos lembra os Da Weasel e em que Papillon diz que não é “como toda a gente”, que “essa gente não sabe como eu sou” e que o seu coração “é diferente”, foi outro dos pontos altos. Tanto assim foi que, quando o tema terminou, o público começou a gritar “Papi, Papi, Papi” e o rapper escondeu a cara com as mãos, fechando os olhos, visivelmente feliz pelo momento. “Acho que os próximos artistas vão ter que me perdoar mas não me apetece sair deste palco neste momento”, apontou então.

“I’m the Money” era a faixa que se seguia, com Papillon a rimar de forma mais agressiva sobre a batida composta pelo produtor português Lhast. Com versos afiados, antecedeu uma ótima sucessão dos temas “Imagina” e “Impec”. Sobre o primeiro, Papillon revelou que ponderou “não o escrever, não o fazer e não o apresentar aqui”, o que talvez se justifique pelo tom confessional da canção, que começa com os versos “Nunca vi os meus pais trocarem um beijo / Amor todos falam dele, mas eu nunca o vejo”. É a canção mais vulnerável de Deepak Looper e, seja por ser inspirada na vida dos pais do rapper ou por, sendo ficcional, poder provocar leituras nesse sentido, percebe-se o pudor. Certo é que é um belíssimo tema e um daqueles em que Papillon melhor consegue contornar alguns dos clichés deste género musical. A segunda, pelo instrumental apurado concebido por Slow J (que voltou a palco para o tocar à guitarra) e pela quietude da letra, é outro momento alto do disco, mais um que confunde estereótipos de género. Sobre Slow J, que o ajudou a fazer o disco, Papillon deixou ao público uma mensagem simples que soou a agradecimento: “És muito melhor quando fazes as pessoas à tua volta melhores”.

O concerto aproximava-se do fim e, depois da já referida festa afro com Plutonio em “Iminente”, o público voltava a dar sinais de entusiasmo: “E salta Papi, e salta Papi, olé, olé”, gritou-se. E o rapper saltou. “Chegámos à reta final”, avisava Papillon. O último fôlego foi com uns quantos “obrigado” e “muito obrigado” repetidos com a banda a acompanhar o agradecimento nos instrumentos, em tom dançável, mas a última canção a ser apresentada era precisamente o tema que encerra o disco, “Metamorfose Fase II”, talvez a melhor carta de apresentação de Papillon enquanto rapper (há também o Papillon cantor, o Papillon hedonista e festivo, o Papillon vulnerável de “Imagina”…), com impressionantes variações de ritmo e intensidade na dicção dos versos.

Restava a última mensagem de um concerto que por certo será recordado por rapper e fãs nos próximos anos: “Muito, muito, mas muito obrigado, Alive. O meu nome é Papillon, foi um prazer estar aqui. Espero ver-vos em breve.” A julgar pelo concerto, há uma boa probabilidade de isso acontecer. Até porque foi difícil não recordar a atuação de Slow J no Super Bock Super Rock no ano passado, com vários pontos em comum com a de Papillon esta quinta-feira no NOS Alive. Na altura, esse concerto confirmou o “salto” de João Batista Coelho para a primeira liga do hip hop nacional (talvez da música portuguesa, também). Se aconteceu assim com Slow J em 2017, porque não acontecerá com Papillon em 2018?

Sem comentários:

Enviar um comentário